Institucional

SÃO VICENTE DE PAULO (1581-1660)

 

 

Nascimento e vocação

 

Vicente de Paulo nasceu na pequena cidade de Pouy, sul da França, em 24 de abril de 1581[1]. Era o terceiro dos seis filhos de um casal de camponeses – João de Paulo e Bertranda de Moras. Ainda criança colaborava nos trabalhos da família, especialmente no cuidado do rebanho. Percebendo sua aptidão para os estudos, seus pais investiram seus sóbrios recursos na formação do filho, na expectativa de que isso investimento se traduzisse em uma carreira rentável para Vicente e da qual também seus familiares pudessem usufruir. Essa ambição, própria da conjuntura eclesial da época, foi que motivou inicialmente sua aplicação intelectual e seu ingresso no meio eclesiástico. Contudo, havia também em Vicente de Paulo um genuíno espírito religioso e uma sincera atração pelo ministério ordenado.

 

Após os estudos preparatórios, foi ordenado presbítero em 23 de setembro de 1600, ainda instigado pela busca por uma estabilidade eclesiástica e financeira. A essa década de sua vida se refere a controvertida história de seu cativeiro segundo a qual, após empreender uma viagem em busca de um benefício que lhe havia sido deixado como herança por uma senhora, mas que estava em mãos de outrem, ele fora capturado e vendido como escravo a três proprietários.

 

Chega a Paris em 1608 e, dois anos, depois é nomeado como um dos capelães da rainha Margarida de Valois, assumindo a função de esmoler e assistência em um hospital. As experiências vividas e a sábia pedagogia do tempo são as ferramentas que Deus usa para lapidar e orientar as motivações de Vicente, fazendo-o pouco a pouco a tomar contato com a vida do povo, especialmente dos mais empobrecidos, e do sentido de seu ministério junto a eles. Neste percurso atravessa um período de profunda crise espiritual, que se tornaram uma fecunda experiência de maturação na fé e no serviço pastoral.

 

As experiências originárias do Carisma

 

Depois de quase dois anos como pároco de Clichy (1612), Vicente passa a trabalhar com os De Gondi, umas mais influentes famílias francesas. Além da educação dos três filhos do casal Margarida Maria e Francisco Manoel, era responsável pelo cuidado espiritual e pastoral das mais de sete mil pessoas que viviam nas inúmeras propriedades dos Gondi espalhadas França. É neste contexto que viveu as duas experiências paradigmáticas de sua vida e missão, ocorridas no ano de 1617 e que estão na origem do carisma vicentino e das fundações que brotam destas intuições carismáticas.

 

A primeira delas acontece em janeiro de 1617 na cidade de Folleville, onde os de Gondi possuíam um de seus castelos. Em viagem com a família, Vicente se depara com a situação de pobreza material e espiritual que assola o povo. Essa realidade torna-se factual para ele ao atender em confissão um ancião da comunidade de Gannes (vila próxima a Folleville), tido pela comunidade como um “homem de bem”. Este, contudo, uma situação espiritual dramática sob o tormento de “pecados que nunca ousava declarar em confissão”. O diálogo com o Pe. Vicente e o encontro sacramental lhe devolveram a paz. A situação, contudo, interpelou o sacerdote, bem como a Senhora de Gondi, que lhe indagou: “Quantas almas se perdem! Como remediar isso?” Ela solicitou, então, ao padre que exortasse os/as cristãos/ãs de Folleville a também eles procurarem a reconciliação sacramental. Na missa de 25 de janeiro, festa da conversão de São Paulo, Vicente profere o que ficou conhecido como o “Sermão da Missão” e que é considerado o nascimento carismático da Congregação da Missão, cuja fundação institucional se deu em 1625. A adesão daquela comunidade à confissão geral foi tão significativa que necessitou da cooperação de outros padres e se espalhou por regiões próximas.

 

Tocado pela experiência de Folleville e desejoso de uma presença mais efetiva junto ao povo, sem prévio aviso à família, Vicente deixa a casa dos De Gondi. Em agosto de 1617 o encontramos como pároco de Chatillôn-les-Dombes. Neste lugar viveu a segunda experiência que lançou as bases do Carisma. No domingo, 20 de agosto, ao se preparar para presidir a missa, Vicente é informado sobre a enfermidade que acometeu uma família da comunidade, de modo que todos os seus membros estavam impossibilitados de cuidarem uns dos outros. Compadecendo-se dessa situação, em sua homilia exorta seus/suas paroquianos/as a fazer algo em prol destes irmãos. A resposta dada por eles surpreende-o: as senhoras da comunidade se reuniram, organizaram provisões e as levaram até a família. Quando, no mesmo dia, se dirige à casa dos enfermos atendidos para visitá-los, Pe. Vicente se depara com um grande número de mulheres que iam e vinham, bem como tantas outras que estavam junto à família. Sua constatação é clara: “eis aí uma grande Caridade, porém, desorganizada”. É preciso que a solidariedade de um dia integre as atitudes e estruturas cotidianas.

 

Desta última experiência surge as Confrarias da Caridade (Damas da Caridade), formada por senhoras de posses que dispunham de seu tempo e recursos para atender os pobres. Esta é a primeira fundação de Vicente de Paulo, reunida pela primeira vez em 23 de agosto e erigida oficialmente em 08 de dezembro de 1617. As Confrarias se espalharam rapidamente pela França. Em cooperação e ampliação da missão realizada pelas Damas se organizou também a atuação da posterior fundação - as Filhas da Caridade.

 

Os desdobramentos da caridade-missão

 

O caminho de conversão de Pe. Vicente compreendeu uma revisão de suas motivações vocacionais e um proativo envolvimento com a vida eclesial e social, particularmente na atenção aos pobres. Em torno do binômio caridade-missão, ele reconfigura o exercício de seu ministério, sendo as fundações que derivam das suas experiências a expressão visível e desta metanoia espiritual e pastoral.

 

Partindo das experiências de Folleville e Châtillon-les-Dombes, algumas realidades serão particularmente caras a Vicente: a) a evangelização e cuidado pastoral do pobre povo do campo, abandonado pelas estruturas eclesiásticas da época, focadas no carreirismo e privilégios; b) a formação do clero, cuja fragilidade e limitação era o combustível que sustentava a autorreferencialidade eclesial; c) a pobreza em todas as suas facetas, causas e consequências, por vezes referendada pelo elemento religioso, e que, mais que gestos de caridade isolados, exigia uma mudança de mentalidades e estruturas que a perpetuavam. Conhecendo a impetuosidade da personalidade de Vicente de Paulo, associada aos clamores de seu tempo, podemos ter noção do que queria dizer quando afirmou” “os pobres, eu os vi”.

 

Em vida, três são as fundações organizadas por Vicente de Paulo:

  • 1617: as Confrarias da Caridade (Damas da Caridade), hoje conhecidas internacionalmente como Associação Internacional de Caridades (AIC), em 1617;
  • 1625: a Congregação da Missão (Padres da Missão), também conhecidos por Padres Lazaristas[2];
  • 1633: as Filhas da Caridade, fundação assumida conjuntamente com Luísa de Marillac.

 

Sobre suas fundações é importante salientar que elas não surgiram como um projeto prévio de sua missão. Há muito mais uma dimensão de intuição espiritual, de escuta da vontade de Deus e resposta generosa a partir dos dons recebidos do que um plano sistemático e estratégico de fundar algo. A originalidade dessas fundações explicita isso. O próprio Vicente evidencia isso quando afirmava às Filhas da Caridade: “Quem pensaria que haveria que viria a haver Filhas da Caridade? [...] Oh, não, minhas Filhas, eu não pensava nisso [...] Pensava Deus nisso por vós. Foi Ele, minhas Filhas, podemos dizer, o autor da vossa Companhia. Ele o é mais verdadeiramente que qualquer outra pessoa” (Coste IX, p. 73. Versão portuguesa).

 

No entanto, a vida e obra de Vicente de Paulo não se restringiu às suas fundações. É importante citar a contribuição dada por ele na formação do clero, na criação dos seminários, na instância política através de sua participação no Conselho de Consciência, no envolvimento ativo com a realidade socioeclesial da época.

 

Morte e legado espiritual

 

Superando a expectativa de vida da época, Vicente de Paulo faleceu em Paris, aos 27 de setembro de 1660, com 79 anos de idade. Seus restos mortais se encontram na capela da Casa da Congregação da Missão. O coração, por sua vez, se encontra exposto em um relicário na Capela das Aparições, da Casa Mãe das Filhas da Caridade.

 

Sua beatificação se deu em 13 de agosto de 1720 e a canonização no dia 16 de junho de 1737. Em 1883 é declarado pelo Papa Leão XIII patrono de todas as Obras de Caridade. Na França é também padroeira da Assistência Pública.

 

A influência que Vicente de Paulo desempenhou na Igreja e na sociedade de seu tempo é inegável. O reconhecimento da Igreja e a continuidade histórica das iniciativas que empreendeu testemunham essa vivacidade apostólica que hoje continua atuante através da Família Vicentina. Diversos ramos que a constituem dilatam no tempo e na história, nos diferentes serviços e ministérios da Igreja, a atualidade da vida e obra de Vicente.

 

Escritos e correspondências[3]

 

No que se refere às fontes históricas de seu Fundador, a Família Vicentina tem o privilégio de contar com um vasto acervo de escritos, correspondências e documentos redigidos pelo próprio Vicente de Paulo, ou por pessoas próximas que tomavam nota, com o seu consentimento ou não, de suas alocuções e conferências.

 

Uma obra relevante na organização e sistematização deste material se deu no início o século XX por Pe. Pierre Coste, secretário e arquivista da Congregação da Missão. Entre 1920-1925, ele compilou os escritos em tomos, aos quais foi acrescido um décimo quarto na segunda metade do século organizado a partir de textos descobertos posteriormente e organizados por Pe. André Dodin (CM). Redigidos originalmente em francês, grande parte já se encontra traduzida também para o português, estando organizada na seguinte estrutura temática:

 

a) Correspondência: estima-se que São Vicente escreveu em torno de 30 mil cartas; destas, tem-se conhecimento de, aproximadamente, 3 mil. Muitas se perderam na Revolução Francesa. Juntando as edições de Coste e as recentemente descobertas, tem-se o número de 2.769 cartas, não sendo consenso entre os estudiosos que todas sejam originais. Das cartas, em torno de 400 foram remitidas a Luísa de Marillac. Possuem extensões diferenciadas e uma ampla gama de destinatários, e estão distribuídas nos oito primeiros tomos da obra de Coste, com datas entre 1607 e 1660;

b) Colóquios com as Filhas da Caridade: tomos IX e X – 120 colóquios com as FCs. A conservação destes textos se deu, sobretudo, pelo zelo de Luísa de Marillac e das primeiras Irmãs em registrar as alocuções de Vicente, sendo alguns manuscritos revisados por ele mesmo;

c) Colóquios com os Missionários: São Vicente se dirigia aos padres, pelo menos, quatro vezes por semana. Compreendem os tomos XI e XII das Obras de Coste, sendo organizados em: conferências, repetições de oração, avisos no capítulo, alocuções a um grupo ou a um particular, e frases;

d) Documentos: tomo XIII da obra de Coste (220 documentos), organizados em cinco partes: documentos relativos à pessoa de São Vicente; documentos relativos à CM; documentos relativos às Confrarias da Caridade; documentos relativos à Companhia da FC; e Damas da Caridade.

 

Indicação de obras sobre São Vicente de Paulo:

 

CASTRO, Jerônimo Pedreira de. São Vicente de Paulo e a magnificência de suas obras. 11ª ed. Petrópolis: Vozes, 1957. 431 p.

GROSSI, Getúlio Mota. Um Místico da Missão: Vicente de Paulo. Contagem: Santa Clara, 2001. 271 p.

MALONEY, Robert. O caminho de Vicente de Paulo: uma espiritualidade para nossos tempos a serviço dos pobres. Curitiba: Vicentina, 1998. 237 p.

MEZZADRI, Luigi. Peregrinos na oração, peregrinos na caridade. Seguindo os passos de São Vicente. Curitiba: Vicentina, 2002. 157 p.

MEZZADRI, Luigi. São Vicente de Paulo e o carisma da caridade. Curitiba: Vicentina, 2004, 134 p.

PÉREZ-FLORES, Miguel. San Vicente de Paúl (II). Espiritualidad y selección de escritos. Madrid: BAC, 1982.

RENOUARD, Jean-Pierre. Saint Vincent de Paul, maître de sagesse: initiation à l’esprit vincentien. Bruyères-le-Châtel: Nouvelle Cité, 2010. 189 p.

ROMÁN, José María. San Vicente de Paúl (I): Biografía. Madrid: BAC, 1981.

TEIXEIRA, V. A. R. São Vicente de Paulo: pelos caminhos de Deus e dos Pobres. In: TEIXEIRA, V. A. R. Impelidos pela Caridade, peregrinos na missão. Perfis biográfico-espirituais de São Vicente de Paulo, Santa Luísa de Marillac e Padre Antônio Portail. Belo Horizonte: O Lutador, 210. pp. 27-77.

VV.AA. A experiência espiritual de São Vicente e a nossa. Trad. Ladislau Biernaski. Curitiba: Vicentina, 1977. 70 p.

 


[1] Essa é a data apresentada pela maioria dos biógrafos de São Vicente, embora pesquisas recentes sinalizem que seu nascimento tenha se dado no ano anterior (1580).

[2] O nome se refere a primeira à primeira casa da Congregação, o Leprosário de São Lázaro, em Paris.

[3] Informações apresentadas por TEIXEIRA, V. A. R. Introdução geral aos textos vicentinos. In: COSTE, P. (org.). São Vicente de Paulo. Obras Completas. Belo Horizonte: O Lutador, 2012. pp. XIX- XLIII.